segunda-feira, 15 de junho de 2009

Wilson Simonal e o revisionismo histórico da "ditabranda"

Está em curso um bizarro revisionismo da música e da política dos anos 60/70, segundo o qual o Pasquim e a esquerda teriam tido poder suficiente para canonizar e destruir ícones da cultura brasileira. É o mundo ao revés. O passado é reescrito como se Jaguar e Chico Buarque, e não Médici e Geisel, tivessem comandado a nação. O mote, evidentemente, é o documentário Ninguém sabe o duro que dei, uma recuperação da figura de Wilson Simonal. A história é danada de complexa, muitos mitos a cercam e há vários interesses em jogo – a maioria deles tendo pouquíssimo a ver com Simonal. Quando Reinaldo Azevedo recomenda um filme como uma aula de história brasileira, é bom ficar de olho.

O documentário não é exatamente desonesto no que diz. Mas ele se presta a uma leitura capciosa, especialmente naquilo que não diz. Sem dedicar ao tema semanas de preparação e pesquisa, eu seria incapaz de fazer algo tão espetacular como o post do Samurai no Outono. Por isso eu havia prometido não falar do filme aqui. Mas como promessas em blog foram feitas para serem quebradas, lá vou eu. O Samura já demoliu, com o martelo da razão crítica e do conhecimento histórico, a baboseira que está se armando em torno desse filme. Tomem este post, portanto, como um humilde apêndice ao Samura. Concordo com tudo que está lá e vou acrescentar dois centavos. A necessidade de fazê-lo me foi confirmada outro dia no Twitter, onde dois interlocutores – que me davam a nítida impressão de não terem visto o filme – me martelavam sem qualquer argumento a cantilena que já virou lugar comum: “o patrulhamento da esquerda destruiu a carreira de Simonal”.

Até que não acompanha a história da música brasileira já conhece o resumo da ópera: Simonal, negro talentoso e carismático, cantor de extraordinários recursos, mestre na divisão rítmica e no suingue, debochado e desafiador, sobe vertiginosamente na preferência popular ao longo da segunda metade dos anos 60, até que em 1971 protagoniza o episódio que mudaria sua vida. Tendo perdido o contrato que realmente lhe dava grana – o da Shell, engavetado depois que Simona fizera o presidente da multinacional esperar no aeroporto durante uma hora e meia enquanto ele dormia --, se dá conta de que os Mercedes, as farras e as noitadas não eram financiados com dinheiro infinito. Descobre-se quebrado. Acusa o contador e contacta meganhas, um deles ligado ao DOPS, para dar-lhe um cacete. Enhanced interrogation techniques, diz o Samura com ironia. Simonal promove uma sessão de tortura em seu contador no DOPS. Quando o contador lhe processa e ele é levado à delegacia para depor, tenta se safar com o conto de que “era um deles”, de que era “um homem do regime”. Daí em diante, está armado o circo para que entre a esquerda má, feia, bobona (e poderosa) que teria transformado Simonal em “dedo-duro”. Que Simonal nunca foi delator do regime é o óbvio do óbvio. Mas isso não quer dizer que você possa entender essa história sem entender a relação entre música popular e a ditadura daquele momento. Antes disso, claro, dois fatos se impõem: 1) a origem do mito do "dedo-duro" é uma história inventada pelo próprio Simonal no momento do arrego; 2) o assunto foi amplamente tratado pela imprensa antes que o Pasquim iniciasse seu sarro. Isso fica claro no próprio filme.

Analisar um documentário é, antes de tudo, dissecar a relação a câmera e o representado. Quem viu o filme se lembra: os depoimentos de Chico Anysio são gravados em close-up horizontal, quase num tête-à-tête com o espectador. As piadas vão se encarregando de criar a cumplicidade, mas não escondem a pergunta que não quer calar: não seria outro Chico o que deveria estar ali? É bizarro o recurso a Chico Anysio para fundamentar a hipótese do filme, sendo ele, afinal de contas, o autor das frases Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi o Barbosa, de triste memória, enunciados tão mais odiosos quanto mais nos lembramos – coisa sabida por qualquer bom vascaíno – que Barbosa foi um dos maiores goleiros da história do ludopédio. A primeira frase é odiosa e a segunda, evidentemente, é falsa. No entanto, seria demais esperar que Chico Anysio respeitasse as glórias de, por exemplo, Mão de Onça ou Dida.

Mas tergiverso, como diria meu mestre Inagaki. Voltemos ao filme.

Os depoimentos de Toni Tornado já são gravados em close-up diagonal, com a câmera em plano superior ao representado. Curiosa escolha. Diminui-se a imensa figura de Toni. Esse, claro, foi um negão que incomodou bastante o regime. Tornado tinha uma relação muito mais orgânica que Simonal com a tradição de luta negra expressa no soul norte-americano. Ficou famosa sua apresentação de "BR-3" no quinto Festival Internacional da Canção, inspiradíssima em James Brown. A ditadura chegou a temer que Tornado reeditasse os Black Panthers por aqui. Fala-se muito da composição de Simonal e Ronaldo Bôscoli em homenagem a Martin Luther King. Ora, o próprio fato de que um reacionário como Bôscoli pudesse compô-la indica que o processo de domesticação da figura do Doutor King já se iniciara. Mas no revisionismo em curso, um tributo a King passa como se fosse um tributo a Malcolm X, um escândalo do indizível. Não o era. Leiam a tese de Eduardo de Scoville, já recomendada pelo Samura. O fato é que o trabalho da câmera sobre Tornado sublinha a impotência do personagem com sua negação: puxa, não dá para imaginar Simonal como dedo-duro...

Mas é no depoimento do neoanaeróbico Nelson Motta que o filme realiza sua operação ideológica. Ao contrário do que ocorre na filmagem de Toni Tornado, as tomadas de câmera que nos oferecem as peroratas de Motta são feitas de baixo para cima, magnificando o personagem, que tem atrás de si, além do mais, uma imponente coleção de CDs e uma réplica da emblemática obra de Hélio Oiticica, que traz o bandido Cara de Cavalo morto, com a legenda Seja marginal, seja herói. Dá-lhe ideologia subrreptícia. Oiticica, evidentemente, se revira no túmulo.

O fato importante aqui é que Nelson Motta, com a autoridade de quem foi testemunha ocular e ainda é o maior repositório de fofocas da MPB das últimas décadas – autoridade, reitero, também construída pelo trabalho da câmera --, empresta legitimidade à ficção do mártir perseguido. Juntamente com muitos fatos inegáveis, vem uma boa dose de distorção e manipulação. Motta chega a afirmar que a explosão de Simonal no final dos anos 60 representou a chegada do primeiro pop star negro na música brasileira fora do samba. Curioso, né? Eu achava que Jair Rodrigues era negro. Lembremos que o estouro de “Disparada”, na voz de Jair, acontece em 1966 – vai ver que para os tímpanos Zona Sul de Motta, “Disparada” é um samba. Omito, claro, o primeiro grande astro pop da música televisionada no Brasil, o negro Jackson do Pandeiro, que embalou corações e quadris com seu programa nos anos 50. Afinal de contas, seria demais esperar que Motta, em seu leblonismo, conseguisse imaginar arte musical brasileira anterior à Bossa Nova. É a vejificação da história da MPB, em ritmo acelerado.

Se formos analisar em detalhes a música brasileira na virada dos anos 60 para os 70, aí é que a hipótese revisionista desaba de vez. Simonal era um grande artista, não há dúvidas. Talvez só o já citado Jackson fosse tão bom como ele na divisão rítmica vocal. O carisma era inegável. Mas a discussão aqui não gira em torno do talento, mas do lugar do artista num momento histórico. Simonal passa ao largo do grande embate que ocorre na música popular brasileira no final dos anos 60: o choque entre a música acústica de protesto emblematizada por Geraldo Vandré (o que se chamava, entre 1966 e 1968, de MPB, sigla que tinha na época um sentido bem diferente, mais nacionalista, daquele que adquiriria nos anos 70) e, por outro lado, o tropicalismo, que resgatara uma vocação cultural no iê-iê-iê da Jovem Guarda, canibalizando o vasto repertório do pop internacional. Aquele embate se resolve rapidinho. Poucas vezes na história da cultura brasileira um choque entre duas tendências é saldado de forma tão categórica com a vitória de um lado. Os tropicalistas comem Vandré e cia. já no café da manhã. A vitória é total e completa, e definidora dos rumos que tomaria a música brasileira. Já em 1970 não era heresia enfiar guitarra elétrica onde fosse. Sugerir que a esquerda populista musical tivesse, em 1971, força suficiente para derrubar alguém é de um cinismo inominável, vindo de quem sabe algo sobre a história – e de ignorância útil lamentável por parte de quem a desconhece. No caso de Reinaldinho, é ignorância e cinismo.

Resgatemos Simonal? A pergunta não faz o menor sentido para aqueles que, como eu, lhe dedicam ouvidos atentos há anos. O problema com o bafafá em torno do documentário é que em vez de sugerir audição à obra do artista, ele acaba traficando revisionismo mentiroso. Repito: não há mentiras no filme. Mas ele se presta a ser embrulhado com ideologia bolorenta. Aquele que muitos de nós consideramos o melhor disco de Simonal, o S'imbora, de 1965, contém canções de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Garoto, Geraldo Vandré, Marcos Valle. Esta não é exatamente uma lista de artistas “patrulhados pela esquerda”. Comparem-no com o disco de 1972, já em fase de produção na época da coça no contador e, portanto, não atingido de forma nenhuma pela suposta “demolição” feita pela esquerda má, feia, bobona e poderosa. A faixa título é uma composição do intragável Ivan Lins. Antes de chegar ao final do lado 1 do LP, você tem que suportar “Mexerico da Candinha”. I rest my case. Ouçam os discos feitos ao longo de década de 70 e comparem-nos com as pérolas anteriores, não ao cacete no contador, mas à vitória tropicalista, que já acontecera, categórica, em 1968.

Mais além do fato de que fez discos ruins nos anos 70 e passou ao largo dos rumos da música nacional daquele momento, é evidente que Simonal foi boicotado. Contribuiu a isso o fato de Simonal ser um negro de cabeça erguida, debochado, que esfregava seu sucesso na cara do establishment branco? Parece-me evidente que sim. Só afirmaria o contrário alguém como Reinaldinho, que nega a existência do racismo brasileiro, o mesmo ao qual agora ele se agarra como hipótese interpretativa para demonizar a esquerda. Mas peralá: quem eram as figuras com inserção nos meios de produção musical e, portanto, com algum poder de reverter o ostracismo de Simona? Os mesmos Mottas e Mieles que agora emprestam legitimidade para que os Reinaldinhos reescrevam – sem saber nada de música – a história da canção brasileira como se esta tivesse sido sufocada pela esquerda amordaçada dos anos 70

fonte: O Biscoito Fino e a Massa


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