Há mais de quinze anos, numa tenebrosa noite de inverno em Iowa City, eu, um amigo argentino e uma espanhola saímos de uma livraria e entramos no primeiro bar à vista. Não me lembro qual era a temperatura externa; mas como estávamos em novembro, devia ser algo próximo a seis graus centígrados, com uma margem de erro de três graus (para baixo). Pedi uma taça de conhaque, folheei um livro de poesia de Walt Whitman e, lá pelas tantas, quando me senti menos esquimó e mais brasileiro, começamos a falar sobre Buenos Aires.
Naquela época eu ainda não conhecia Buenos Aires; no entanto, essa bela cidade existia na minha imaginação: ruas, bairros, parques, bares e personagens com os quais me havia deparado na leitura de contos e romances argentinos. De alguma maneira, a cidade não me era desconhecida, e essa familiaridade livresca foi uma espécie de bússola quando visitei Buenos Aires pela primeira vez. Parecia que estava voltando para lá, e que a viagem anterior, a imaginária, era quase mais real que a verdadeira.
Lembro que o meu amigo argentino, o escritor Rodrigo Fresán, começou a criticar com ironia seu país, e em algum momento nós dois criticamos nossos respectivos países. Minha crítica era um pouco mais amarga. Disse: Há poucos anos (1992) o presidente do Brasil, acusado de corrupção, foi destituído pelo congresso. E isso depois de vinte e cinco anos de ditadura.
Tragédias não nos faltam, disse Rodrigo. Aposto com você que a história da Argentina é muito mais trágica que a do Brasil.
Antes de enumerarmos os desastres de cada pátria, nossa amiga Anatxu interveio: A Espanha não fica atrás. Somos essencialmente trágicos. Mas não vamos falar de coisas tão tristes. Vocês conhecem Barcelona? Na minha juventude eu tinha morado em Barcelona, e as lembranças da capital da Catalunha eram mais ou menos nítidas. Contei para Anatxu e Rodrigo os lugares por onde caminhava por Gracia, o bairro onde morei seis meses; enumerei ruas e bares do bairro Gótico, de Barceloneta e do velho porto mediterrâneo. (Sabe-se que alguma coisa mudou depois das Olimpíadas de 1992, mas a fisionomia da cidade não foi alterada).
Tens uma memória e tanto, disse Anatxu.
Não é isso, eu disse. É que algumas cidades européias foram destruídas durante as guerras. No Brasil, a destruição das cidades é cotidiana. Quem morou no Rio, Recife ou São Paulo na década de 1940, quase não reconhece sua cidade hoje. Quer dizer, reconhece, mas muita coisa da memória urbana foi apagada para sempre.
Tentei explicar como, a partir da década de 1970, a especulação imobiliária, a ignorância de políticos, e a ganância de certas construtoras e instituições destruíram edifícios históricos e logradouros públicos em nome do "progresso". Seria algo como derrubar os belos edifícios da Recoleta e do bairro de Gracia para construir templos religiosos horrorosos ou torres não menos horrorosas de vinte ou trinta andares.
Mas por que vocês não protestam, perguntou Anatxu.
Hesitei, pensei em indicar-lhe a leitura de Raízes do Brasil, mas optei pelo silêncio. Um silêncio que traduzia impotência ou vergonha. O mesmo silêncio que me deprime quando vejo um alto magistrado declarar que os brasileiros que combateram a ditadura eram terroristas.
Pensava nas nossas cidades destruídas e na declaração desse alto magistrado quando encontrei por acaso o Jam, um velho amigo advogado. Jam estava revoltado com a declaração do juiz da suprema corte. Que belo exemplo cívico, ele exclamou, com ironia. Quanta lucidez histórica! E quanto menosprezo pelas vítimas dos torturadores, pelos jornalistas e operários e professores e tantos outros profissionais perseguidos e demitidos sumariamente!
Meu amigo tem razão. Esse senhor togado esqueceu que os militares golpistas de 1964 interromperam com ódio e brutalidade um governo eleito democraticamente. Esqueceu que eles, os magistrados, foram humilhados e ridicularizados por esses mesmo golpistas. Quanta diferença entre esse magistrado brasileiro e o juiz espanhol Baltasar Garzón, que moveu uma ação contra o ex-ditador Augusto Pinochet, acusado de assassinar milhares de chilenos.
Talvez seja essa a resposta à minha amiga espanhola: a Lei, na América Latina, não raramente protege os algozes e difama as vítimas. E isso serve para as nossas cidades destruídas, para os julgamentos de corruptos de colarinho branco, e torturadores e assassinos a mando de um Estado de exceção. Esses, sim, foram os verdadeiros terroristas, como disse meu amigo advogado Jam.
Milton Hatoum
Naquela época eu ainda não conhecia Buenos Aires; no entanto, essa bela cidade existia na minha imaginação: ruas, bairros, parques, bares e personagens com os quais me havia deparado na leitura de contos e romances argentinos. De alguma maneira, a cidade não me era desconhecida, e essa familiaridade livresca foi uma espécie de bússola quando visitei Buenos Aires pela primeira vez. Parecia que estava voltando para lá, e que a viagem anterior, a imaginária, era quase mais real que a verdadeira.
Lembro que o meu amigo argentino, o escritor Rodrigo Fresán, começou a criticar com ironia seu país, e em algum momento nós dois criticamos nossos respectivos países. Minha crítica era um pouco mais amarga. Disse: Há poucos anos (1992) o presidente do Brasil, acusado de corrupção, foi destituído pelo congresso. E isso depois de vinte e cinco anos de ditadura.
Tragédias não nos faltam, disse Rodrigo. Aposto com você que a história da Argentina é muito mais trágica que a do Brasil.
Antes de enumerarmos os desastres de cada pátria, nossa amiga Anatxu interveio: A Espanha não fica atrás. Somos essencialmente trágicos. Mas não vamos falar de coisas tão tristes. Vocês conhecem Barcelona? Na minha juventude eu tinha morado em Barcelona, e as lembranças da capital da Catalunha eram mais ou menos nítidas. Contei para Anatxu e Rodrigo os lugares por onde caminhava por Gracia, o bairro onde morei seis meses; enumerei ruas e bares do bairro Gótico, de Barceloneta e do velho porto mediterrâneo. (Sabe-se que alguma coisa mudou depois das Olimpíadas de 1992, mas a fisionomia da cidade não foi alterada).
Tens uma memória e tanto, disse Anatxu.
Não é isso, eu disse. É que algumas cidades européias foram destruídas durante as guerras. No Brasil, a destruição das cidades é cotidiana. Quem morou no Rio, Recife ou São Paulo na década de 1940, quase não reconhece sua cidade hoje. Quer dizer, reconhece, mas muita coisa da memória urbana foi apagada para sempre.
Tentei explicar como, a partir da década de 1970, a especulação imobiliária, a ignorância de políticos, e a ganância de certas construtoras e instituições destruíram edifícios históricos e logradouros públicos em nome do "progresso". Seria algo como derrubar os belos edifícios da Recoleta e do bairro de Gracia para construir templos religiosos horrorosos ou torres não menos horrorosas de vinte ou trinta andares.
Mas por que vocês não protestam, perguntou Anatxu.
Hesitei, pensei em indicar-lhe a leitura de Raízes do Brasil, mas optei pelo silêncio. Um silêncio que traduzia impotência ou vergonha. O mesmo silêncio que me deprime quando vejo um alto magistrado declarar que os brasileiros que combateram a ditadura eram terroristas.
Pensava nas nossas cidades destruídas e na declaração desse alto magistrado quando encontrei por acaso o Jam, um velho amigo advogado. Jam estava revoltado com a declaração do juiz da suprema corte. Que belo exemplo cívico, ele exclamou, com ironia. Quanta lucidez histórica! E quanto menosprezo pelas vítimas dos torturadores, pelos jornalistas e operários e professores e tantos outros profissionais perseguidos e demitidos sumariamente!
Meu amigo tem razão. Esse senhor togado esqueceu que os militares golpistas de 1964 interromperam com ódio e brutalidade um governo eleito democraticamente. Esqueceu que eles, os magistrados, foram humilhados e ridicularizados por esses mesmo golpistas. Quanta diferença entre esse magistrado brasileiro e o juiz espanhol Baltasar Garzón, que moveu uma ação contra o ex-ditador Augusto Pinochet, acusado de assassinar milhares de chilenos.
Talvez seja essa a resposta à minha amiga espanhola: a Lei, na América Latina, não raramente protege os algozes e difama as vítimas. E isso serve para as nossas cidades destruídas, para os julgamentos de corruptos de colarinho branco, e torturadores e assassinos a mando de um Estado de exceção. Esses, sim, foram os verdadeiros terroristas, como disse meu amigo advogado Jam.
Milton Hatoum
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